Folha de S. Paulo publicou minha carta criticando um artigo do jurista Ives Gandra Martins, que atacava a proposta de Lei de Direitos Humanos enviada pelo Governo Federal ao Congresso. Mais há a dizer sobre o artigo (e muito mais sobre a proposta), mas deixo aqui apenas a reprodução das palavras de Gandra e das minhas, além de outras repercussões publicadas pela Folha, para que os leitores do blogue (todos os dois e meio) possam formar sua própria opinião.
A única informação a acrescentar é um repeteco de muito do que eu já disse aqui: a tortura é crime contra a humanidade, sujeito a julgamento por tribunal internacional, e portanto imprescritível. Aliás, foi exatamente o
presidente da OAB, Cezar Britto.
Aqui vai o artigo:
Guerrilha e redemocratização
Ives Gandra da Silva Martins:
OREGIME de exceção, em que o Brasil viveu de 1964 a 1985, foi encerrado, não por força da guerrilha -que terminou, de rigor, em 1971-, mas principalmente pela atuação da OAB, à época em que figuras de expressão a conduziam, como Raymundo Faoro, Márcio Thomaz Bastos, Mário Sérgio Duarte Garcia e Bernardo Cabral, e de parlamentares como Ulysses Guimarães, Mário Covas e Franco Montoro, entre outros.
Tenho para mim que a guerrilha apenas atrasou o processo de retorno à democracia, pois ódio gera ódio, e a luta armada acaba por provocar excessos de ambos os lados, com mortes, torturas e violências.
Muitos dos guerrilheiros foram treinados na mais antiga e sangrenta ditadura da América (Cuba) e pretendiam, em verdade, apenas substituir uma ditadura de direita por uma ditadura de esquerda.
Os verdadeiros democratas, a meu ver, foram aqueles que, usando a melhor das armas, ou seja, a palavra, obtiveram um retorno indolor à normalidade, sem mortes, sem torturas, sem violências.
A Lei da Anistia, proposta principalmente pelos guerrilheiros, foi um passo importante para a redemocratização, pois possibilitou àqueles que preferiram as armas às palavras a sua volta ao cenário político. A lei, à evidência, pôs uma pedra sobre o passado, sepultando as atrocidades praticadas tanto pelos detentores do poder, à época, como pelos guerrilheiros. E foram muitas de ambos os lados.
Num país em que o ódio tem pouco espaço -basta comparar as revoluções de nossos vizinhos com as do Brasil para constatar que o derramamento de sangue aqui foi sempre muito menor-, tal olhar para o futuro permitiu que o Brasil ressurgisse, com uma Constituição democrática.
Nela, o equilíbrio dos Poderes possibilitou o enfrentamento de crises, como o impeachment, a superinflação, os mais variados escândalos, entre os quais o do mensalão foi o maior, e a alternância de poder sem que se falasse em rupturas institucionais. Vive-se -graças à redemocratização voltada para o futuro, e não para o passado- ambiente de liberdade e desenvolvimento social e econômico próximo ao de nações civilizadas.
O Programa Nacional de Direitos Humanos, organizado por inspiração dos guerrilheiros pretéritos, pretende, todavia, derrubar tais conquistas, realimentando ódios e feridas, inclusive com a tese de que os torturadores guerrilheiros eram santos, e aqueles do governo, demônios.
Essa parte do plano foi corrigida, tendo o presidente Lula admitido que, se for criada a comissão da verdade, há de apurar tudo o que de excessos foi praticado naquela época -por militares e guerrilheiros. Tenho a impressão de que isso não será bom para a candidata Dilma Rousseff.
O pior, todavia, é que o programa é uma reprodução dos modelos constitucionais venezuelano, equatoriano e boliviano, todos inspirados num centro de estudos de políticas sociais espanhol, para o qual o Executivo é o único Poder, sendo o Judiciário, o Legislativo e o Ministério Público Poderes vicários, acólitos, subordinados. No programa, pretende-se fortalecer o Executivo, subordinar o Judiciário a organizações tuteladas por “amigos do rei”, controlar a imprensa, pisotear valores religiosos, interferir no agronegócio para eliminá-lo, afastar o direito de propriedade, reduzir o papel do Legislativo e aumentar as consultas populares, no estilo dos referendos e plebiscitos venezuelanos, além de valorizar o homicídio do nascituro e a prostituição como conquistas de direitos humanos.
Quem ler a Constituição venezuelana verificará a extrema semelhança entre os instrumentos de que dispõe Chávez para eliminar a oposição e aqueles que o PNDH-3 apresenta, objetivando alterar profundamente a lei maior brasileira.
O programa possui, inclusive, “recomendações” ao Judiciário sobre como devem os magistrados decidir as questões prediletas do grupo que o elaborou, à evidência, à revelia de toda a população e do Congresso. Pela má qualidade do texto e pelo viés ideológico ditatorial, dificilmente essas propostas passarão no Legislativo. Se passarem, creio que o Supremo barrará tudo aquilo que nele fere as cláusulas pétreas constitucionais e os valores maiores em que a sociedade se lastreia.
Certa vez, ao saudoso crítico Agripino Grieco um amigo meu (Dalmo Florence) apresentou livro de poesia recém-lançado, pedindo-lhe a opinião. No dia seguinte, Agripino disse-lhe: “Dalmo, li o livro de seu amigo e aconselho a queimar a edição e, em caso de reincidência, o autor”. Sem necessidade de adotar a segunda parte do conselho agripiniano, a primeira seria admiravelmente aplicável a esse programa de direitos desumanos.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 74, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.
E, aqui, as repercussões publicadas em 23/1. A minha é a segunda:
Direitos humanos
“Quando tudo parece estar se perdendo nesse mar de corrupção, hipocrisia e contrassenso, surge, mais uma vez, a voz corajosa e idônea de Ives Gandra Martins (”Guerrilha e redemocratização”, “Tendências/Debates”, ontem). Tudo o que o articulista escreveu sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos é absolutamente verdadeiro.
O PNDH é um amontoado de absurdos e afrontas aos direitos dos cidadãos brasileiros. É o resultado de “acordos” espúrios com pessoas e entidades que muito longe estão de representar os nossos direitos e interesses e os interesses do país e que passa, inclusive, pela institucionalização do assassinato de crianças no ventre materno.
Então concluo, concordando com o articulista, que o ideal é mesmo queimar essa excrescência, já que não podemos (ou não devemos) “queimar” o seu autor.”
GISELA ZILSCH, advogada (São Paulo, SP)
“O artigo do nobre jurista Ives Gandra Martins é cuidadoso na escolha dos termos. Chama golpe de “revolução” e ditadura de “regime de exceção”.
Compara os torturadores que agiram a serviço do regime -em nome, portanto, de um poder que representava a coletividade brasileira, mas que não lhes era legítimo- aos opositores que buscaram depor a ditadura. A estes chama de “guerrilheiros”, embora não conste que Vladimir Herzog, Geraldo Vandré, Zuzu Angel ou Heleni Guariba tenham praticado guerrilha nenhuma (mas torturados eles foram).
Não mostra a mínima preocupação com pais e filhos que até hoje não puderam enterrar seus filhos e pais. Diz que a OAB e o MDB foram os principais articuladores do fim do regime, deixando de lado a própria propaganda negativa que a tortura contra os “guerrilheiros” rendia ao governo, bem como os movimentos operário e estudantil. Ao final, sugere que queimar livros seria uma solução democrática, prática, como sabemos, usual na Alemanha dos anos 1930.”
LÉO BUENO (Santo André, SP)
“Após tanta polêmica em relação ao plano de direitos humanos, resolvi, paulatinamente e ao longo dos últimos dias, lê-lo na íntegra. Percebi o quanto superficial foi o tratamento dado pela Folha à questão e o quanto, a meu ver, alguns comentários se mostram equivocados.
Há mais pontos no plano do que foi até agora raramente discutido. Recomendo a todos os leitores que façam o mesmo, a fim de embasar suas opiniões. E recomendo que o jornal aborde o assunto com maior profundidade e que, se for preciso, dado a importância e extensão do decreto, destine um caderno especial a essa questão importantíssima.”
WADY ISSA FERNANDES (São Paulo, SP)
No dia seguinte saíram mais duas cartas sobre o debate:
Direitos humanos
“Incrível! Esse é o adjetivo que tenho para o artigo “Guerrilha e redemocratização” (Tendências/Debates”, 22/1), de Ives Gandra da Silva Martins.
Que o professor Ives Gandra sempre foi vinculado ao pensamento conservador da direita brasileira não é nenhuma novidade.
A surpresa fica com o festival de sandices contidas em seu artigo, coroado com a proposta de lançar à fogueira o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos e o seu autor, o presidente Lula, no mais requintado estilo da Santa Inquisição.”
RENATO AFONSO GONÇALVES (São Paulo, SP)
“Fala-se constantemente em indenizar as “vítimas” do movimento de 1964. Não se fala, entretanto, da indenização devida às famílias dos 126 militares mortos, às vezes covardemente, no período e que apenas cumpriam o seu dever. Já dizia Roberto Campos que uma revolução não é um convescote de escoteiros. Há vítimas dos dois lados.
Deve-se lembrar que a revolução de 64 foi um movimento oriundo da sociedade civil, que exigia a volta do país à normalidade, pois imperava a desordem e as greves se sucediam até em setores vitais, como água, esgotos e ferrovias.
Havia a ameaça de uma ditadura de esquerda.”
MARLI MIRA HOELTGEBAUM (São Paulo, SP)

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